SEJAMOS AUDACIOSOS/AS
Carta aberta aos participantes
dos "Diálogos em humanidade" em Bruxelas,
Parc Josaphat, 30 de junho e 1 julho - 2018.
Riccardo Petrella
Nesses tempos de rejeição do outro, de guerras devastadoras, mas muito lucrativas para os senhores das armas, tempos de predação da natureza e da violência em todos os domínios, Vamos parar o rito sacrificial, o roubo da vida que é criminoso mas está legalizado.
Cada dia, há mais de 4000 crianças que morrem por doenças devidas à falta de acesso à água potável e aos serviços higiênicos. É um crime coletivo. Milhões de lavradores sem-terra passam fome. É incrível. Um bilhão e 300 milhões de pessoas em idade ativa não têm trabalho e vivem na miséria, na angústia, no desprezo dos privilegiados. Por outro lado, registram-se mais ou menos 8000 acidentes de trabalho mortais no mundo (2, 8 milhões de mortos por ano em 2016). É insuportável; 60 milhões de refugiados atravessam os oceanos ou percorrem territórios inóspitos à procura de um lugar onde habitar. Eles são cassados fisicamente porque considerados "ilegais e clandestinos". É desumano: ao redor de 15 mil espécies vivas desaparecem cada ano por causa de nossos modos de produção e de consumo predadores. É inaceitável.
Poderíamos continuar os exemplos... Sabe-se disso tudo. Entretanto, o roubo da vida continua. Triunfam as desigualdades entre as pessoas, entre as comunidades humanas e os povos não somente no nível do rendimento econômico, mas sobretudo, em relação à dignidade e à garantia dos direitos humanos e sociais. Na realidade, é o rito sacrificial que o sistema econômico e social dominante hoje impõe que se realize cada dia no altar da sobrevivência e do fortalecimento da dominação e do enriquecimento de uma mínima minoria dos habitantes da Terra.
É criminoso que o sistema considere racional e, portanto, justificado e legítimo que o dono da Amazon tenha podido, em 2017, ganhar 34 bilhões de $ sem trabalhar. Unicamente graças ao lucro financeiro produzido pelas ações na bolsa das quais ele é o proprietário. Enquanto isso, na Europa, um professor de escola primária para ganhar o mesmo tanto precisaria trabalhar dois milhões de ano e em tempo completo. (Na América Latina, quantos anos quem ganha salário mínimo teria de trabalhar para ganhar o equivalente a isso?).
As classes dominantes não creem na igualdade entre os seres humanos diante do direito à vida. Eles argumentam que as desigualdades são o preço a pagar para o progresso, o crescimento econômico e a riqueza das nações ditas desenvolvidas. Não podemos mais aceitar que nossas sociedades legitimem assim esse rito criminoso.
Construamos uma Humanidade justa, em paz, na qual todos/as os/as habitantes da Terra possam viver.
Pode-se, em escala planetária, construir uma humanidade capaz de possibilitar que todos os seres humanos tenham o direito de acesso aos bens e aos serviços necessários e indispensáveis à vida, na quantidade e qualidade consideradas mínimas. É possível eliminar os fatores estruturais que geram processos de empobrecimento no mundo e garantir o respeito ao direito à vida. Um bom estado ecológico garante as condições de regeneração e de diversificação do capital biótico da terra e da água do planeta, assim como das outras espécies vivas da Terra.
Atingir esses objetivos não é principalmente um problema de recursos financeiros. A chave é o querer. Precisamente é isso que aqueles que atualmente dominam não querem. Isso não seria lucrativo para os donos de capitais privados. Não é do interesse deles.
Pode-se também, a longo prazo, chegar a um desarmamento coletivo mundial, partindo do desarmamento das armas nucleares e das armas bacteriológicas, como foi recentemente aprovado por 122 países membros da ONU. No entanto, as potências militares, tendo à frente os Estados Unidos, nunca quiseram e não querem ouvir falar de desarmamento total (exceto se for o desarmamento dos outros). Os mercados financeiros não o querem. O motivo é que, por causa da sua crescente tecnologia, a produção de armas e guerras se tornou um dos setores econômicos mais lucrativos do mundo, depois da indústria farmacêutica, de informática e de petróleo (sem falar nas drogas e no mercado de pornografia).
Nós também poderíamos parar a devastação da natureza e da vida na Terra. Poderíamos projetar e implementar uma política ecológica mundial, baseada na superação do antropocentrismo e das ideologias produtivistas, extrativas e que instrumentalizam a vida. Já há pelo menos 30 anos, as principais agências especializadas das Nações Unidas (FAO, OMS, PNUE, PNUD, OMM, UNESCO ...) as três conferências sobre a Terra, as 25 Conferências da ONU sobre as mudanças climáticas demonstraram que é possível interromper e reverter essas tendências. Mas, isso não convém aos "senhores da vida" (indústrias farmacêuticas, químicas, agroalimentares, proprietárias de mais de 20.000 patentes privadas sobre os seres vivos e também aos "senhores da inteligência artificial" (TI). Essas são indústrias informáticas, de conhecimento, de telecomunicações, as novas formas de mídia. Esses também são proprietários de milhares de patentes privadas sobre a inteligência artificial (I.A). Todos esses se jogam no caminho da conquista e da dominação dos processos e dos mercados de transumanização e transnaturalização.
"Pode-se, poder-se-ia, se deveria...", mas o problema n°1 é que, no imaginário de nossas cabeças e em nossos corações (emoções, sentimentos, medos), a humanidade ainda não existe como ator-chave do presente e do futuro planetário. Os atores presentes, por toda parte dominantes, são justamente aqueles que impedem a inversão de tendências, a construção de uma humanidade justa, em paz, respeitosa da vida sobre a Terra.
Nessas condições, é absolutamente indispensável a luta em comum, desde o nível local até o planetário. Precisamos lutar contra o prestígio e o poder que, nos últimos 30 ou 40 anos, as nossas sociedades deram aos senhores das armas, aos senhores da vida e aos senhores da inteligência artificial. Mas, sobretudo aos senhores do dinheiro.
Nossa luta é a luta pela construção da justiça. Não há justiça sem igualdade. Não há igualdade sem liberdade. Não há liberdade sem solidariedade e sem partilha. Não há solidariedade e partilha sem responsabilidade comum dos bens e dos serviços essenciais e indispensáveis para a vida de todos os habitantes da Terra. Não há responsabilidade comum sem democracia verdadeira e radical.
Bruxelas, 29 de junho de 2018
tradução de Marcelo Barros
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