Água:
é necessário voltar a estatiza-la
28.07.2020
- Riccardo Petrella
Este
28 de Julho “celebramos” o 10º aniversário da resolução da
ONU que reconhece o direito humano (universal, indivisível e
imprescindível) à água potável e ao saneamento. Infelizmente, a
situação é tal que a vida evoluiu como se a decisão aprovada pela
mais alta organização política da comunidade internacional nunca
tivesse existido: 2,2 mil milhões de pessoas não sabem o que é
água potável e 4,2 milhões não têm acesso a instalações
sanitárias e serviços higiénicos; mais de 9 milhões de crianças
com menos de 5 anos morrem todos os anos de doenças causadas, entre
outras coisas, pela falta de água potável. Lavar as mãos é um ato
impossível para centenas de milhões de pessoas com as consequências
que conhecemos neste tempo de pandemia! (1)
A
água apropriada para uso humano é cada vez mais escassa: muitos
dos rios, lagos e lençóis freáticos mais importantes do mundo
estão a morrer, secos por captações de água muito superiores à
sua capacidade natural de renovação (em quantidade e qualidade),
envenenados pela poluição e contaminação, sufocados por resíduos…
As secas estruturais estão a afetar um número crescente de regiões
do mundo (incluindo a Amazónia!). A terra está a ser desertificada,
e a devastação das florestas desempenha um papel importante.
Finalmente, várias cidades importantes do mundo (de Nova Iorque a
Nairobi, de Tóquio a Dhaka…) estão seriamente ameaçadas pelas
inundações devido à subida do nível do mar. Jacarta, por exemplo,
já está a ser abandonada. (2)
Neste
contexto, falar sobre o direito à água e ao saneamento é um
eufemismo. De facto, os “especialistas”, os líderes políticos
e empresariais, só falam da escassez de água no mundo. De uma
forma enganosa, dizem que a escassez de agua se justifica pelo
crescimento da população mundial e pelas alterações climáticas
(o que é apenas parcialmente correto). Esquecem-se de mencionar o
papel da economia global dominante que devora os recursos do planeta
até se esgotarem, e o papel dos nossos sistemas sociais baseados no
apetite pelo poder e pela riqueza privada, fomentados por um
desenvolvimento tecnológico bélico, violento e predatório da vida.
Face à escassez de água como inevitável, os grupos sociais
dominantes veem o caminho para a salvação na resistência, na
capacidade de resistir e adaptar-se aos choques associados à
escassez. No entanto, nas condições atuais, a resiliência só é
possível para aqueles com grande capacidade tecnológica e
financeira. (3) Adivinha quais são os países e grupos sociais que
serão capazes de resistir nas próximas décadas?
Segundo
as Nações Unidas, o direito à água, à água para toda a vida,
traduz-se concretamente na disponibilidade de 50 litros de água
potável por dia e por pessoa para uso doméstico e de 1.800 m³ de
água por ano e por pessoa para todos os usos combinados. No entanto,
o próprio conceito do direito humano à água, que é igual para
todos e justificável, foi substituído nos últimos 30 anos pelo
conceito de acesso equitativo e exequível à água. Para o “acesso
equitativo a um preço acessível”, já não existe qualquer
obrigação por parte do Estado. Estamos a sair do âmbito da lei e a
entrar no campo das necessidades de água que devem ser satisfeitas
de acordo com a acessibilidade económica, política e social dos
consumidores individuais. O preço “acessível” da água é um
poder discutível nas mãos de gestores de serviços de água que
fixam o preço da água de forma a assegurar ganhos financeiros. (4).
Hoje em dia, quer sejam privadas ou “públicas”, as empresas
estão a ganhar dinheiro com a água para toda a vida!
Esta
profunda mudança cultural e política foi possível graças à
conjunção de quatro transformações estruturais: a comercialização
da vida (tudo foi reduzido a uma mercadoria: sementes, água,
transportes públicos, conhecimento, saúde, habitação, plantas,
animais, genes humanos); a privatização de todos os bens e serviços
(nada escapou a este processo, incluindo o dinheiro, que deixou de
ser um símbolo fundamental da soberania das nações e dos Estados);
a liberalização e desregulamentação de toda a atividade económica
em nome da livre governação entre os detentores de interesses (os
famosos “stakeholders”) e, finalmente, a “financeirização”
da economia que submeteu as principais decisões sobre a atribuição
e utilização dos recursos disponíveis às lógicas financeiras de
desempenho e eficiência a curto prazo. Os próprios seres humanos
foram reduzidos a “recursos humanos” para serem explorados ao
máximo do seu desempenho financeiro, apesar dos direitos humanos e
para além deles.
Como
resultado, já não existem bens e serviços verdadeiramente comuns
ou bens verdadeiramente públicos. Em 1980, o Supremo Tribunal dos
Estados Unidos legalizou a patenteabilidade dos organismos vivos para
fins privados e lucrativos. A patenteabilidade dos algoritmos
(Inteligência Artificial) tornou-se prática comum nos anos 90. Mais
de 50.000 patentes sobre a vida foram reconhecidas pelo sector
privado. Idem, no campo da IA. Em 1992, por ocasião da
Conferência Internacional sobre a Água em Dublin em preparação da
Primeira Cimeira da Terra no Rio de Janeiro, a resolução final
afirmava que a água já não deveria ser considerada um bem social,
um bem comum, mas um bem económico privado, sujeito às regras da
economia de mercado. A sede de água pela vida humana deu lugar à
sede de água pelas atividades económicas para a competitividade e o
lucro. Pior ainda, em 2002, na Segunda Cimeira da Terra em
Joanesburgo, foi declarado que à natureza deveria ser atribuído um
valor monetário através do cálculo dos custos e benefícios dos
serviços “ambientais” prestados pela natureza. A monetizarão da
natureza (preços da natureza, banca da natureza) e a
patenteabilidade dos seres vivos puseram fim a qualquer forma de
economia do bem comum, dos bens públicos, da economia social e
solidária fora dos micro-projetos.
O
direito à vida já não está na mão autoridades públicas. As
políticas agro-alimentar, de saúde, de informação e de
desenvolvimento tecnológico, tais como o “desenvolvimento
sustentável” e a segurança da água, já não fazem parte do
domínio da soberania do Estado. Estão mais dependentes dos
interesses dos grandes grupos privados mundiais como a Suez, Vivendi,
Big Pharma, GAFAM, oligopólios mineiros e, por último mas não
menos importante, os grandes grupos financeiros (bancos, companhias
de seguros). Uma das atividades mais lucrativas e crescentes no
domínio da água é o sector dos seguros contra alterações
climáticas (turismo, agricultura, etc.) e “acidentes
climáticos” (secas, inundações, etc.). Quanto mais
incertezas afetam a água do planeta, maior é o valor de mercado da
água. Na “lógica” financeira especulativa dominante, é
evidente que quanto mais se confirmar a escassez de água, mais o
valor económico da água aumentará em detrimento do seu valor para
a comunidade global da vida na Terra.
Adeus
ao direito universal efetivo à água? Sim, se os princípios,
políticas e práticas coletivas descritas acima não forem
invertidos. A sociedade e o Estado devem se ver livres da sua
privatização e “financeirização”. É necessário construir a
sociedade de bens públicos globais comuns e cooperativos. Há uma
necessidade urgente de construir o sistema global de políticas
públicas baseado na responsabilidade coletiva partilhada e na
solidariedade para a salvaguarda, cuidado e promoção da vida e dos
direitos à vida e, portanto, a água para todos! A
ré-municipalização da água é fundamental para a construção de
uma política pública global, desde que seja, evidentemente, uma
verdadeira municipalização cuja gestão seja financiada por
impostos e não pelo rendimento gerado pela venda de serviços de
água, mesmo a preços acessíveis.
Em
qualquer caso, o futuro da água e o direito à vida não podem ser
alcançados através da água processada (5), mas através de uma
nova era de engenharia coletiva criativa e de cultura política e
social guiada pela vontade de viver em conjunto com respeito pela Mãe
Terra.
Notas
(1).
https://www.un.org/fr/observances/water-day
(2)
Cf. “Oceanos e alterações climáticas: os novos desafios”,
ocean-climate.org ‘ uploads ‘ 2019/09 ‘ DEF files
(3
) Cf. Riccardo Petrella, Eau et résilience. Les stratégies des
dominants en question,
https://wsimag.com/fr/economie-et-politique/61408-eau-et-resilience,
e pelo mesmo autor, La sécurité hydrique pour tous les habitants de
la Terre,
https://wsimag.com/fr/economie-et-politique/61870-la-securite-hydrique-pour-tous-les-habitants-de-la-terre
(4)
No âmbito dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda
das Nações Unidas para 2030, a água é o Objetivo 6, que diz:
“6.1: Até 2030, garantir o acesso universal e equitativo à água
potável segura a um custo acessível.
https://www.agenda-2030.fr/odd/odd-6-garantir-lacces-de-tous-leau-et-lassainissement-et-assurer-une-gestion-durable-des
Não há qualquer referência ao direito à água.
(5)
“Água processada” significa água “fabricada” pelo homem,
tal como água dessalinizada, água resultante do tratamento de águas
residuais, água derivada de icebergues “capturados”.
Co-signatários
convidados
Riccardo
Petrella, Co-fondateur Comité International pour le Contrat Mondial
de l’Eau, (Belgique/Italie)
Leonardo
Boff, Théologien (Brésil)
Luis
Infanti de la Mora, Evêque du Diocèse de Aysen, « Patagonia sin
represas » (Chili)
Federico
Mayor, Ancien Directeur Général de l’Unesco, Président Fondation
Culture de la Paix (Espagne)
Anibal
Faccendini, Directeur Catedra de l’Agua, Universidad Nacional de
Rosario (Argentine)
Joao
Caraça, Co-fondateur de l’Agora des Habitants de la Terre,
Président Université de Coimbra (Portugal)
Fondation
Danielle Mitterrand, (Jérémie Chomette, Marion Veber) (France)
Marcelo
Barros, Moine bénédictin (Brésil)
Jean-Pierre
Wauquier, Médecin, président de H²O (France)
Roberto
Savio, Co-fondateur de l’Agora des Habitants de la Terre, Fondateur
de Other News (Italie)
Bernard
Cassen, Journaliste, ancien Directeur général du Monde diplomatique
(France)
Sylvie
Paquerot, Professeure titulaire, Université d’Ottawa (Canada)
Pierre
Jasmin, Artiste pour la Paix (Canada-Québec)
Roberto
Colombo, Maire de Canegrate (Italie)
Jacques
Brodeur, Edupax, OSB (Canada-Québec)
Marcos
P. Arruda, Dir. PACS Insituto Politicas Alternativas para o Cone Sur
(Brésil)
Deborah
Nunes, Urbaniste, Prof. Universidad del Estado de Bahia (Brésil)
Lilia
Ghanem, Anthropologue et Rédactrice en chef de Badael (France/Liban)
Jean-Yves
Proulx, Connaissances et citoyens (Canada-Québec)
Philippe
Giroul, Ecologiste (Canada-Québec)
Sergio
et Clara Castioni, Libraires, (Italie)
Bernard
Tirtiaux, Maître verrier, écrivain, sculpteur (Belgique)
Maria
Palatine, Musicienne, Harpiste (Allemagne)
Pietro
Pizzuti, Auteur et Acteur de théâtre (Belgique/Italie)
Margherita
Romanelli, Spécialiste en coopération internationale pour le
développement durable (Italie)
Andrey
Grachev, Diplomate (Russie)
Consiglia
Salvio, « Comitato regionale campano acqua bene comune » (Italie)
Alain
Adriaens, Ecologiste, « objecteur de croissance » (Belgique)
Issam
Naaman, Ancien ministre (Liban)
Domenico
Rizzuti, ancien syndicaliste Université/recherche, Forum
italo-tunisien (Italie)
Alain
Dangoisse, Dir. Maison du Développement Durable, UCL (Belgique)
Pierre
Galand (B), Impliqué dans plusieurs associations, en particulier
l’Association Belgo-Palestinienne et le Centre d’Action Laïque,
ancien sénateur (Belgique)
Monastero
del Bene Comune (Paola Libanti, Silvano Nicoletto) (Italie)
Roberto
Louvin, Professeur de droit comparé, Université de Trieste (Italie)
Roberto
Musacchio, Ancien eurodéputé, Ass. Altramente (Italie)
Jean-Claude
Garot, Journaliste (Belgique)
Angelo
Bonelli, Président des Verts (Italie)
Patrizia
Sentinelli, Présidente de “Altramente”, ancienne ministre à la
coopération et au développement (Italie)
Jean-Claude
Oliva, Président Coordination Eau Ile de France (France)
Cristiana
Spinedi, Professeur Enseignement secondaire (Suisse)
Adriana
Fernandes, Educatrice à la retraite (Chili)
Lucie
Sauvé, Professeur titulaire Université du Québec à Montréal-UQAM
(CND-Québec)
Francesco
Comina, Journaliste, écrivain (Italie)
Ulrich
Duchrow, Professeur, Université de Heidelberg (Allemagne)
Ina
Darmstaedter, Présidente du Festival International de la Paix de
Berlin (Allemagne)
La
Boisselière, Espace citoyen d’innovation sociale (Philippe Veniel,
Melissa Gringeau) (France)
Julien
Le Guet, « Bassines Non Merci » (France)
Christian
Legros, Directeur Belgaqua (Belgique)
Armando
De Negri, Médecin, représentant du Brésil au Comité de l’ONU
sur les droits humains (Brésil)
Vladimir
Mitev, Journaliste Barricada (Bulgarie)
Valter
Bonan, Echevin aux Biens Communs, Commune de Feltre (Italie)
Anwar
Abou Aichi, Ancien ministre de la culture (Palestine)
Hassan
Chatila, Professeur en philosophie (France/Syrie)
Bater
Wardam, Conseiller ministériel de l’environnement (Jordanie)
Mario
Agostinelli, Physicien/ISPRA, Fondateur de ”Energia Felice”
(Italie)
Guido
Viale, Saggista, economista e ambientalista (Italie)
Université
du Bien Commun (Corinne Ducrey, Cristina Bertelli, Gilles Yovan)
(France)
Maurizio
Montalto, Avocat, ex-président de la société publique hydrique de
Naples ABC (Italie)
Fabrice
Delvaux, Président de Kréativa, Education au développement durable
(Belgique)
Catherine
Schlitz, Présidente Présence et Action Culturelles, Angleur
(Belgique)
Paul
Saiz, Entrepreneur (France)
Zein
Al-Abidine Fouad, Poète (Égypte)
Hoda
Kamel, Écrivain (Egypte)
Kais
Azzawi, Ancien ambassadeur, écrivain (Irak)
Roberto
Malvezzi, Musicien, écrivain (Brésil)
Fernando
Ayala, Diplomate (Chili)
Alassane
Ba, Directeur du Centre Humanitaire des Métiers de la Pharmacie
(France)
Amadou
Emmanuel, Resp. Relations Internationales de AMT/WAFA (Cameroun)
Guido
Barbera, Président CIPSI (Italie)
Ugo
Mattei, Professeur de droit international à l’Université de la
Californie à San Francisco (USA) et de droit civil à l’Université
de Turin (Italie)
Luca
Cecchi, Comitato Acqua Bene Comune Verona (Italie)
Valérie
Cabanes, Juriste en droit international, Co-fondatrice de « Notre
affaire à tous » (France)
Alfonso
Pecoraro Scanio, Président de l’Università Verde, Ancien ministre
de l’environnement (Italie)
Marie
France Renard, Professeur d’économie, Université de
Clermont-Ferrand (France)
Fatoumata
Kane Ki-Zerbo (Burkina Faso)
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